quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Catástrofes “naturais”: as imagens simbólicas

O ser humano é um risco no mundo...
Em tempo de catástrofe ambiental, uma enxurrada de fotos altamente realistas mostra praticamente todos os detalhes dos acontecimentos, trazidos à vista de todos, produto de um grande esforço de trabalho dos fotojornalistas, sem contar os colaboradores espontâneos da imprensa... 
No entanto, passado um certo tempo, as que ficam (e, por isto, se tornam históricas) são as mais simbólicas, não as mais cruéis e exatas ...

Historicamente, as notícias são centradas no que se entende como excessos da natureza contra os esforços de sobrevivência (ou de progresso...) do ser humano. 

O capítulo relativo às chuvas, por exemplo, é vasto: no Rio de Janeiro, há registros de enchentes desde 1711... 
Os fotógrafos sempre se esforçaram por registrar tudo, mas uma das únicas fotos neste tema que ganhou  Prêmio Esso foi a de Carlos Mesquita, do Jornal do Brasil (a anterior, de Antonio Andrade,  1967, é uma cena de ação), é uma espécie de "retrato" das consequências das chuvas de verão de 1982 em Petrópolis-RJ: a foto do rapaz de apenas 14 anos que trazia no colo o corpo de um menino retirado instantes antes dos escombros de um desabamento e dizia "ele está morto, ele está morto"...
Chuvas de verão em Petrópolis, RJ - Carlos Mesquita, 1982

Resultou numa primeira página forte, a foto atravessando toda a parte superior do jornal, muito discutida, alguns achando que, excessivamente chocante, não deveria ter sido publicada. O mérito do autor é ter substituído, no ato fotográfico, o drama coletivo, o conjunto confuso de escombros e esforços, por um singelo mas definitivo retrato da fragilidade humana.

As secas, historicamente frequentes no Nordeste, cada vez mais comuns no Sul, são outras das catástrofes “naturais” continuamente fotografadas no Brasil.
A seca do Ceará foi assunto, em 1878, da nossa primeira fotorreportagem, em fotografias de alta carga simbólica, as famélicas crianças fotografadas em estúdio.
Em 1983, mais de um século depois, nova versão: a foto de Delfim Vieira, também do JB, mostrando o alimento disponível para o sertanejo, um calango. 
Calango mata fome no Ceará - Delfim Vieira, 1983 

A foto foi feita em Apuiarés-CE, depois do prefeito declarar na TV que, para sobreviver, o povo estava comendo calangos (nome local para um tipo de lagartixa). Da ida à região resultou a foto de “um homem muito enrugado e muito magro, que nos mostrou o produto de um dia de caça: um calango morto com atiradeira, pronto para virar torresmo e ser comido em pedacinhos, com farinha, por toda uma família” (leia depoimento).
A foto, publicada no alto da primeira página do jornal, torna-se um resumo simbólico da seca pela “objetividade” da imagem. Nela, apenas duas informações: o que é um calango e em que condições estava o homem que se dispunha a comê-lo. Uma economia de dados que só aumenta o impacto da imagem...

Mas, nem sempre o ser humano é mera vítima da natureza, caso se insista nesta separação...
Cada vez mais, a catástrofe é provocada pelo ser humano. E, mais uma vez, a imagem que fica, sendo um resumo objetivo do momento, se torna, no tempo, uma referência simbólica.
É o caso da foto de Domingos Peixoto, publicada em O Globo, em janeiro de 2000, da agonia de uma ave coberta de petróleo, consequência do derramamento de petróleo na baía de Guanabara, advindo da refinaria da Petrobras, em Duque de Caxias-RJ.
Derrame de petróleo na Guanabara - Domingos Peixoto, 2000

Sem dúvida, a imagem mais marcante de mais um desastre ambiental, entre tantas e tantos...

De catástrofe em catástrofe, o fotojornalista traça a crônica da sobrevivência humana.
A seleção de fotos simbólicas, no entanto, mostra apenas uma pequena parte da história da insensatez humana.

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

“Bonecos” da História: o retrato das negociações

O fotojornalismo também tem seus bonecos, mas não é brincadeira não...
”Fazer um boneco”, no jargão fotojornalístico, é tarefa relativamente pouco valorizada pelos repórteres-fotográficos empregados na imprensa, funcionários de um jornal diário. Disputando espaço nas páginas, não é de estranhar que desenvolvam alguma resistência à tarefa, para eles prosaica, de tirar retratos, de “fazer bonecos”...
Para fotógrafos de revistas, o retrato é tarefa mais habitual e mais valorizada. A principal fotografia de uma edição pode ser um retrato, muito frequentemente a própria capa, e poderá ter vida longa, em muitas reproduções.
Para o fotógrafo, como parte das negociações para um bom retrato, surge a questão do aproveitamento das condições reinantes ou a invenção das próprias...
Pixinguinha - Walter Firmo, 1968

 Um ótimo exemplo da observação do ambiente e da sua apropriação no retrato é a foto do músico e compositor Pixinguinha em sua casa de Ramos, feita por Walter Firmo, em 1968, para a revista Manchete.
O próprio Firmo, em tintas românticas, no depoimento Um santo enternecido, publicado no blog A História bem na Foto, conta porque escolheu o local da foto:
Era início de setembro e a propalada primavera já se anunciava, com seus dias de sol agradável pregado no azul de um céu sem nuvens. Havia, plantadas aos pés da mangueira, dálias e rosas, salpicando dessa forma, um lirismo impressionista, cujos matizes frios e quentes, pincelavam certa quietude anunciando que a felicidade estava ali e, que Pixinguinha se emolduraria muito bem plantado naquele recanto de ordem e paz.


Nem sempre é assim tão lírico... Às vezes, o fotógrafo, por qualquer razão, precisa criar, para a foto, um ambiente diferente do que o fotografado habitualmente frequenta, no que, aliás, pode correr sérios riscos...
Rogério Reis fala da foto (leia depoimento), modelo da estátua do poeta Carlos Drummond de Andrade (do escultor Leo Santana), atração no calçadão do Posto 6 de Copacabana, e não deixa dúvida: “foi uma foto construída”.
Drummond em Copa - Rogério Reis, 1983
Vizinho dele, Rogério sabia que Drummond não costumava caminhar na direção de Copacabana, e sim do Leblon, mas precisava de uma foto especial para Veja. Se Drummond aceitou, devia fazer algum sentido: afinal, com esta mudança de rumo, os dois criaram uma nova “realidade”...
Luelane Corrêa, no documentário A Cidade e o Poeta, fixou a câmara diante da estátua, entrevistou usuários do calçadão e registrou “testemunhas” que garantiam que ele sempre sentava ali, onde até escrevia poemas....



Pelo menos, foi uma decisão consensual, como manda o bom figurino do retrato fotojornalístico... Seja como for, a história dos retratos mostra que alguma negociação é sempre necessária. E, às vezes, é justamente o excesso de negociações que dá valor histórico à foto. 
É o caso da foto do deputado posando de cuecas...
Barreto Pinto posa para a posteridade - Jean Manzon, 1946
Em 1946, Barreto Pinto, um novo rico recém eleito deputado (pouco mais de 200 votos, assumiu o mandato por ser um dos suplentes de Getúlio Vargas), teria acertado com o repórter David Nasser e o fotojornalista Jean Manzon, da revista “O Cruzeiro”, uma reportagem sobre sua importante presença na alta sociedade carioca. Na sessão de fotos, na casa da nova esposa, um palacete em Botafogo, os jornalistas teriam sugerido que, devido ao calor, dispensasse as calças, que as fotos só o mostrariam da cintura para cima, e ele, ingenuamente, teria concordado.
Revista O Cruzeiro, 1946

A publicação da matéria "Barreto Pinto sem Máscara" (replicada até pela revista Time nos EUA), em que o deputado aparece nestes trajes em várias fotos (posando e nos preparativos), provocou grande celeuma, incluindo a questão do suposto acordo entre os repórteres e o fotografado. Correu, no entanto, a versão de que ele teria pago a reportagem, já incluindo a combinação de processar posteriormente os jornalistas, já que todos ganhariam notoriedade com isso...
A conseqüência maior do imbróglio foi a cassação do deputado por "falta de decoro", a primeira do Congresso brasileiro. Quanto à publicação da matéria, não houve maiores conseqüências jurídicas ou legais.
       
    Em suma, as negociações do retrato, em seus limites, vão da situação em que o fotografado não tem a menor chance de participar até o caso do fotografado comandar de tal modo as ações que a foto sai exatamente como quer. Mas já é assunto para outra postagem...