terça-feira, 24 de maio de 2011

A Cultura da Natureza (e suas marcas)

Destruir a Natureza: será que faz parte da Natureza Humana?...
É certo que a Cultura separou-se da Natureza, e já lhe é superior?...
E o (ser) Humano (nós, o que cuida e o que maltrata) saberá manter-se vivo no planeta Terra?...

No momento, no Rio de Janeiro, duas belas e sensíveis exposições fotográficas tratam destes assuntos, repondo a fotografia em uma de suas mais nobres funções, a de um olhar da consciência.
 
Evidentemente, o fotógrafo J.L.Bulcão (em parceria com o designer francês Antoine Olivier), pelo que mostra em sua exposição “Guardiões da Floresta Amazônica”, acredita que sim!... 
Colheita de açaí - J.L.Bulcão, 2009

Em viagens pela Amazônia, em 2009, registraram comunidades integradas à floresta: quebradeiras de coco-babaçu, coletores de açaí, seringueiros, índios sustentados pelo guaraná... A exposição, que inclui peças de artesanato e registros de som, exalta a capacidade das comunidades de se auto-sustentarem.    

Estas preocupações decorrem das necessidades práticas... No início do século XX, as sucessivas secas que afetavam o Rio de Janeiro levaram a um pioneiro esforço de recuperação ecológica: o replantio da Floresta da Tijuca, violentamente invadida pelas fazendas de café, o novo grande negócio do latifúndio brasileiro de então.
Major Archer

Foi o Major Archer e seus seis escravos (Constantino, Eleuthério, Leopoldo, Manoel, Matheus e Maria) que lideraram esta empreitada, com mais 22 trabalhadores assalariados, plantando em 13 anos quase 100 mil mudas de espécies nativas (porém, introduziram plantas importadas, como a jaqueira, hoje dominante em grandes áreas, quase uma praga...).

Chico Mendes em Piracicaba - Pauléo, 1988

Uma causa que pode ser mortal... Sempre houve quem propusesse o empate, o aproveitamento sensato dos bens naturais, mas a engrenagem de destruição humana já levou muitos destes. Entre eles, Chico Mendes, que, enquanto lutava pela vida, antevia (como se vê na foto de Pauléo) o seu imediato destino...


Desta época, em 1865, um dos primeiros exemplos de fotografia a serviço da consciência ecológica, a foto de George Leuzinger, da Carvoaria do Palatinato Superior, em Petrópolis-RJ, conforme emocionado texto de Pedro Vasquez.   
Carvoaria Palatinato Superior, Petrópolis - George Leuzinger, 1865

Fica a pergunta: a floresta aguenta modelos econômicos mais complexos? E os que vêm de fora, aprenderão, a tempo, a preservá-la?

A exposição do fotógrafo José Caldas, presidente da AFNATURA - Associação dos Fotógrafos de Natureza, traz mais dúvidas, mas é indicação da profundidade das mudanças ambientais no Brasil.
Sugestivamente intitulada “Brasil e a Transformação da Paisagem” (o convite é uma brilhante “charge fotográfica”: um mapa do Brasil, com pobreza e futebol), é uma seleção (com curadoria de Ângela Magalhães e Nadja Peregrino) de mais de 20 anos (e vários livros) de seu trabalho, que ele chama de “documentação geográfica”.   
    
Campo de futebol na Serra da Canastra - José Caldas
Nas belas fotos, algumas em grande formato, é evidente o pesado conflito entre as atividades econômicas predatórias dos recursos naturais, que degradam a paisagem, e o crescimento da postura crítica na consciência ambiental, que ajuda a preservar reservas naturais.

O tema agora ganha belas fotos em nobres espaços, mas, afinal, quais são as fotos históricas da “transformação da paisagem” no Brasil?...

O próprio José Caldas responde, com conhecimento de causa, lembrando o desmatamento da Amazônia, da Mata Atlântica, do Cerrado: “Tudo isso tem fotos dispersas, mas não ''A'' foto!  Essas coisas acontecem lentamente, por isso a gente não nota nem reclama...”.
Mas, passado um tempo, sempre podemos perceber os gestos fundadores destas grandes tragédias ambientais ou entender que até mesmo esforços sinceros podem levar a duras destruições...

No início do século XX, a República militarista, com suas ideias positivistas, leva as expedições do futuro Mal. Cândido Rondon aos limites ocidentais do país: não havia mais dúvidas sobre a chegada da Civilização aos sertões!... Até o próprio Rio da Dúvida foi identificado, em 1914, graças à expedição em que Rondon guiou o ex-presidente americano Theodore Roosevelt aos confins de Rondônia, numa epopeia quase lhes foi fatal, em 237 dias pela Amazônia, história não podia deixar de virar livro... 
Rondon (2o à esq) lancha com Roosevelt (2o à dir) durante a Expedição, 1914.
Foi-se a dúvida: o atual Rio Roosevelt passa pelas terras dos Cinta-largas, hoje rasgadas por lavras de diamantes...

Eixos de Brasília no Cerrado - Mário Fontenelle, 1957
E, se esta ida para o Oeste, seguindo as profecias e os interesses, precisava de um marco, algumas décadas depois foi feita uma cruz no Cerrado e dela surgiu Brasília. 
O marco zero está na foto de Mário Fontenelle, considerada pelo fotógrafo e antropólogo Milton Guran, ao comentar sua obra, “a mais extraordinária fotografia do Brasil moderno, uma imagem seminal que simboliza o momento em que o brasileiro tomou posse efetiva do seu destino”.  
Momento de chegada dos “passageiros da esperança” ao Planalto e da abertura de caminhos que levariam à dominação do Cerrado e ao acesso aos mistérios da Amazônia, a expansão do poder.

Médici inaugura Transamazônica - 1970
E quanto mais incontestável é o poder, mais profundo é o golpe com que fere a Terra...
Em 1970, em Altamira, Pará, o ditador-presidente Médici inaugura uma placa de bronze, sugestivamente incrustada no tronco de uma castanheira, e com este ato marca o início oficial da construção da rodovia Transamazônica, a tal que ligava “nada a lugar nenhum”... 
Hoje, a foto lembra a destruição de grandes áreas de florestas no Pará e Mato Grosso por empresas que aproveitaram os incentivos do “milagre econômico”.

E a estes outros gestos se seguiram, e os índices das queimadas variam mas não recuam, e as diretrizes do novo Código Florestal são discutidas mas discutíveis, e, com tudo isto, a História continua...
Mas, só enquanto o ser humano estiver sobre a face da Terra.
Ou, talvez, de outras terras, espaço afora...

José Cláudio Ribeiro da Silva - Nova Ipixuna, Pará



Mais uma marca na História...

O extrativista e ativista ambiental José Cláudio Ribeiro da Silva e sua esposa Maria do Espírito Santo da Silva, ambos com 54 anos, foram executados por pistoleiros em Nova Ipixuna, Pará, no mesmo instante em que este texto estava sendo escrito...

[Saiba quem ele foi e o que pensava, clicando aqui]



sexta-feira, 13 de maio de 2011

13 de Maio de 1888: Abolição do Trabalho Escravo?...

Em nosso apoteótico (mas às vezes reflexivo) calendário, nem bem saímos do Dia do Trabalho e já chegamos ao Dia da Abolição da Escravatura. Essas coincidências, embora inúteis, são sempre sugestivas...
A escravidão no Brasil, por exemplo... Foi abolida por uma lei de dois parágrafos, logo chamada de “Lei Áurea”, aprovada “na pressão” (popular) pela Câmara no dia 10, e pelo Senado nos dias 12 e 13, e validada, “com uma penada” (como se dizia antigamente), em 13 de Maio de 1888, um domingo, às três da tarde, pela Princesa Isabel, a regente do Império, logo aclamada pelos combativos abolicionistas como “A Redentora” e festejada pela multidão, à frente do Paço, e pelo povo, em festas, desfiles e missas.  
Aprovação da Lei Áurea na Câmara - 10/05/1888 - A. Luiz Ferreira
           
Sabe-se de alguns poucos registros fotográficos. José Murilo de Carvalho, na Revista de História da Biblioteca Nacional deste mês, em artigo sobre “o mais importante acontecimento da história do Brasil independente”, contabiliza apenas 25 fotos conhecidas no tema (algumas, de outros locais do país).
Multidão à frente do Paço - 13/05/1888 - A. Luiz Ferreira
          
Na Coleção Princesa Isabel, na Biblioteca Nacional, estão as 15 imagens fundamentais, que formam uma belíssima reportagem fotográfica, presenteadas à Princesa pelo fotógrafo Antonio Luiz Ferreira, que fez seu marketing pessoal em cima de um bom trabalho, mas é, de resto, praticamente desconhecido...

As fotos foram recuperadas e publicadas, em 2008, no livro Coleção Princesa Isabel – Fotografia do Século XIX por Pedro Corrêa do Lago e sua mulher Bia Corrêa do Lago.
R. do Ouvidor e prédio do jornal O Paiz

Maio de 1888 – A. Luiz Ferreira
 



           
Há muitas fotos de legítimos escravos, nos estúdios ou no trabalho (veja neste mesmo blog), mas (e não por acaso...) praticamente não há fotos das diversas formas de tortura de escravos (leia texto de Ronaldo Vainfas) registradas em outros meios, dos textos às gravuras. Uma forma de “esquecimento histórico antecipado”, praticado pelos profissionais criadores de imagens, “naturalmente” induzidos pelas classes dominantes daquela sociedade escravista que é, apenas, o nosso passado não tão distante...   

O que leva à necessária pergunta: no Dia da Abolição, o trabalho escravo no Brasil foi também abolido?...
Os fatos demonstram que não, e basta acompanhar o noticiário: siderúrgicas e frigoríficos, a toda hora, são pegos reduzindo custos graças à produção escravocrata, de carvão ou de gado...
Mas há uma grande diferença em relação àqueles tempos: a atitude dos fotógrafos. E vários dos nossos contemporâneos têm denunciado o trabalho escravo, em imagens crueis mas, muitas vezes, surpreendentemente singelas.
Carvoeiros - Marcos Prado
Jardim Gramacho - Marcos Prado
Entre eles, Marcos Prado, que se tornou também produtor e diretor de cinema. 
A princípio interessado em típicos temas da classe média Zona Sul carioca, demonstrou grande persistência (e paciência) no registro de questões sociais, fazendo pelo menos duas impressionantes séries de fotos, que resultaram em livros e filmes: Os Carvoeiros (que lhe rendeu vários prêmios, inclusive o Marc Ferrez Funarte de 1997) e Jardim Gramacho (lixão em Duque de Caxias, RJ, base para o documentário Estamira).
Garoto carvoeiro, Fazenda Financial, MS
  J. R. Ripper, 1988
“Seu sonho era ser jogador de futebol”,
diz a legenda no livro Imagens Humanas.
Índio guarani, boia-fria em canavial, MS
 J. R. Ripper
Um outro é João Roberto Ripper. Oriundo do fotojornalismo carioca, tendo coberto importantes acontecimentos, como as Diretas Já, passou a dedicar-se a temas sociais (trabalho escravo, infantil, índios, prostituição, saúde), produzindo, em seu projeto Imagens da Terra, ensaios referenciais para a fotografia documental brasileira. 
Ripper apresenta seu trabalho
na Sexta Livre, Ateliê da Imagem - Rio.
13 de Maio de 2011 - A.Ramos
Criou a agência Imagens do Povo, base da Escola de Fotógrafos Populares da Maré, enquanto trabalha individualmente no projeto Imagens Humanas. Por sua obra, mereceu, em 2010, os prêmios Conrado Wessel e Marc Ferrez Funarte. 

Para não dar um tom desesperançado (afinal, houve avanços, das leis trabalhistas às cotas de acesso, ainda que a má distribuição de renda continue radical...), o melhor é voltar à digníssima fotorreportagem de Luiz Ferreira, para encerrar esta postagem com a majestosa fotografia da missa campal do dia 17, no campo de São Cristóvão.
           
Do ponto de vista fotográfico, é impressionante que tenha conseguido a participação total da multidão (não havia megafones ou altofalantes, apenas a atração pela câmara...): estão praticamente todos ligados no fotógrafo!
Missa em Ação de Graças pela Abolição da Escravatura - 17/05/1888 - A. Luiz Ferreira
[clicar nas fotos para ampliar]

Do ponto de vista histórico, sendo este o primeiro momento de igualdade para todos os brasileiros, é emocionante observar a convivência um tanto desconfortável (mas quase amorosa...) entre brancos e negros (ainda que poucos), misturados, lado a lado, em todo o extenso quadro da fotografia. 
A exceção, é claro (e me preocupam as conotações, no caso, desta palavra...), está no canto inferior esquerdo, justo no palanque onde se postam a Família Imperial (ao centro, a Princesa Isabel) e os principais políticos e autoridades: não é difícil notar (embora seja, afinal, plenamente compreensível) que são todos brancos...  

domingo, 1 de maio de 2011

1º. de Maio: a foto que o tempo coloriu

O 1º de Maio é certamente um produto de importação...
É referência à data da greve operária pela jornada de trabalho de oito horas, em Chicago, Estados Unidos, 1886, conhecida como Revolta de Haymarket. A repressão da polícia causou a morte de vários trabalhadores e alguns líderes ainda foram condenados à morte.  A data foi transformada em símbolo de luta e é o Dia do Trabalho pelo mundo a fora, exceto nos E.U.A e poucos outros países...
No Brasil, passa a ser considerada a partir do início do século XX, com a chegada de imigrantes de origem urbana, especialmente italianos e espanhóis, incluindo lideranças socialistas e anarquistas.
A primeira greve nacional, em 1º de Maio de 1907 – Revista Ilustração Brasileira, SP


São eles que comandam as primeiras agitações e protestos, reivindicando jornadas de oito horas (em vez de 13h), proibição do trabalho de menores de 14 anos, fim da jornada noturna para mulheres e menores, congelamento do preço dos alimentos e aumento salarial. O auge desta série de movimentos ocorre durante a I Guerra Mundial, com as greves de 1917 em São Paulo e Rio de Janeiro; a greve da Cantareira em Agosto e a Insurreição Anarquista em Novembro de 1918, no Rio; e as grandes greves de 1919, em vários estados (leia mais aqui).  


Getúlio Vargas nas mãos dos trabalhadores, 1942
Nos tempos de Getúlio, após a instauração da ditadura do Estado Novo, em 1937, os trabalhadores são cooptados pelo “trabalhismo” não socialista, através da propaganda e da instituição de novos direitos trabalhistas. Até o malandro muda, quer ser trabalhador... O samba de Wilson Batista e Ataulfo Alves, de 1941, o "Bonde de São Januário", em sua versão oficial, forçada pelas pressões do momento, diz que o bonde leva “mais um operário/sou eu que vou trabalhar” (veja a história aqui). O título é uma evidente referência ao estádio do Vasco da Gama, local das comemorações do 1º. de Maio durante o Estado Novo, local, inclusive, da assinatura da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) por Getúlio Vargas, em 1º. de Maio de 1943.
A partir daí, o Dia do Trabalhador deixa de ser considerado um momento de protesto e crítica às estruturas sócio-econômicas, com seus piquetes e passeatas, e passa a ser um dia de comemorações e de celebração, com festas, desfiles, predominando, mais recentemente, os grandes shows de artistas populares e sorteios de automóveis e até casas...

Mas, ao menos em dois importantes momentos, este caráter dispersivo é substituído por eventos da maior relevância...
Lula fala em assembleia no estádio e a presença de fotógrafos, 1980

Em 1978, as lideranças sindicais aproveitaram o 1º. de Maio para preparar a greve do dia 12, de mais de 3.000 metalúrgicos da Scania, em São Bernardo, SP, dez anos após a anterior, em 1968, do ano da imposição do AI-5. O movimento cresce, sustenta greves em 78 e 79 e sofre intervenção do governo em 1980, com a prisão de Lula e outras lideranças. Estas greves dão estímulo ao processo de reforma partidária (quando surge o PT, o Partido dos Trabalhadores) e impulsionam o processo de redemocratização do país, que resultará na campanha pelas Diretas Já, de 1985.

Atentado no Riocentro - Aníbal Philot, 1981
Em 1981, no Rio de Janeiro, estava previsto que o evento principal seria, mais uma vez, um show de artistas populares... O espetáculo ficou por conta de militares radicais do Exército, ao falharem no chamado atentado do Riocentro. Dentro de um Puma, com uma bomba no colo, morreu um sargento, enquanto no banco do motorista jazia um capitão gravemente ferido. A tentativa de acusar organizações de esquerda ajudou a desacreditar os governos militares e a apressar (?) a democratização.

Dirigentes da CUT e Danny Glover - Danilo Ramos, São Paulo, 2011

Em 2011, após tantos anos de esvaziamento da luta, enquanto as centrais sindicais competiam pelo show ou sorteio mais produtivo, quando até mesmo o salário mínimo já não lhe está mais vinculado, a data tem ao menos um novo ingrediente...
Com a presença do ator norte-americano Danny Glover, filho de sindicalistas, a festa da CUT, em São Paulo, colocou foco na relação entre Brasil e África e na participação nesta luta dos negros brasileiros. 
Escravos numa plantação de café - Marc Ferrez, c. 1882

Não chega a ser uma volta ao passado, mas nunca é demais lembrar (e reconhecer e reverenciar): os muitos trabalhadores negros do Brasil de hoje, continuamente desmerecidos nas relações trabalhistas, descendem justamente dos escravos, os trabalhadores fundamentais na construção do Brasil.