sábado, 30 de julho de 2011

As cidades e seus fotógrafos históricos

A cidade, campo de batalha entre a estruturação geométrica de suas construções e a insinuância irrequieta de habitantes e transeuntes, é matéria prima inescapável para os fotógrafos...
Mas, nem todos fazem dela o seu motivo central, conseguem fotografá-las de forma disciplinada, dedicam-lhe toda uma obra... Na prática, apenas alguns poucos tornaram-se fotógrafos históricos das cidades em que nasceram, viveram ou investiram, por um tempo, o seu talento. Se o fizeram, não terá sido só por paixão pessoal ou exigência da profissão, mas, talvez mais certamente, por uma criativa harmonia entre estes tão poderosos impulsos.

Entre as muitas exposições do FotoRio 2011, algumas recuperam as fotos históricas (e as próprias histórias) de fotógrafos que, identificados com as suas (ou mesmo outras) cidades, transformaram-se em guardiões (e também mensageiros) das imagens de seu passado.

Um exemplo clássico, é a obra do fotógrafo “ítalo-gaúcho” Virgilio Calegari, apresentado na exposição “Um Cavaliere entre dois mundos”, um destaque no FotoRio. Chegando ao Brasil com 13 anos de idade, ainda no século XIX, Calegari fotografou Porto Alegre de tal forma que “ajudou a criar e popularizar a imagem da pequena capital que se pretendia grande”, no dizer da curadora da exposição, Sinara Sandri. Em 1910, no auge da carreira, com vários prêmios internacionaisl, recebeu de seu país a comenda de Cavaliere, pela contribuição à cultura italiana e pelo seu sucesso no exterior. 
Pça XV, esq Mar.Floriano, Porto Alegre -Virgilio Calegari, 1910
Estes fotógrafos, que produzem a memória visual das cidades, são típicos das grandes metrópoles, cujo crescimento e modificações acompanham por décadas. Mas, ainda no FotoRio, temos um belo exemplo em um âmbito regional, a exposição “O Sal da Terra” (prorrogada até 14/08/11), com fotos de Wolney Teixeira, que documentou a Região dos Lagos, RJ, entre os anos 30 e 70 do século XX.

Largo de Santo Antonio, canal de Itajuru e rua da Praia - Cabo Frio - Wolney Teixeira, 1948
Além das salinas, praias, restingas, as pescarias, as festas e os políticos, suas fotos mostram “a vila colonial que permaneceu intocada até os anos 50, quando a cidade passa a adquirir feições de balneário turístico”, como destaca Mauro Trindade, que editou, para a exposição e futuro livro, os mais de 10.000 negativos guardados pelo filho do fotógrafo.
Centro de São Paulo - Cristiano Mascaro, c. 1985



Outras visões das cidades dependem de um olhar especial. No correr do século XX, vários fotógrafos fizeram leituras particulares de certas cidades utilizando técnicas específicas, conseguindo dar às fotos um tom autoral, que se descola do registro “realista” do período inicial da fotografia.

Um exemplo é o tratamento altamente formal, aparentemente distanciado, do fotógrafo, professor e arquiteto Cristiano Mascaro em suas fotos de São Paulo: com um denso preto e branco e em formato quadrado, como se retratasse a personalidade da cidade. Um trabalho que se tornou, através de livros e exposiçoes, pelo apuro das imagens, um marco visual da cidade de São Paulo: “ele é um mestre no que se refere à percepção da arquitetura como protagonista”, declara o crítico Agnaldo Farias.

Elev. Lacerda e Merc. Modelo, Salvador - Cesar Duarte, 2008
Cesar Duarte, mais jovem e menos conhecido fotógrafo carioca, além de registros para a Prefeitura do Rio, também fez, como expressão pessoal, uma escolha técnica: usando o mote “cidade iluminada” para seus livros , fotografou Rio de Janeiro e Salvador em um horário especial, a chamada “twilight zone”, a passagem do dia para a noite, o momento em que a luz natural do fim da tarde se equilibra com a luz artificial dos interiores e da iluminação pública, o que possibilita criar fotos surpreendentes de locais conhecidos.



Um dos nossos grandes fotógrafos-historiadores, Augusto Malta, também trabalhou, no início do século XX, para a Prefeitura carioca (que conserva seu acervo), fazendo desta posição profissional a base de sua obra. Em mais de 30 anos, Malta registrou do cotidiano aos mais dramáticos acontecimentos da cidade: a construção da Av. Rio Branco, a destruição do Morro do Castelo, a vida nas cabeças-de-porco, o surgimento das favelas, as revoltas, os carnavais, tudo...

Av. Rio Branco, Rio de Janeiro - Augusto Malta, 1923


Outras grandes cidades brasileiras têm seus fotógrafos-historiadores e, no correr do século XIX, um dos mais importantes foi Militão Augusto de Azevedo, um ator carioca que, ao se mudar para São Paulo,  torna-se fotógrafo de retratos. Anos mais tarde, faz uma grande obra como paisagista, deixando como principal legado, o "Álbum Comparativo de Vistas da Cidade de São Paulo (1862-1867)", publicado em 1887.

Igreja N. S. dos Remédios e Pátio da Cadeia, S. Paulo - Militão, 1862
Certamente, o maior deles (entre muitos!..) foi Marc Ferrez, que tem a sua extensa obra bem preservada. Xará de seu tio, um escultor que veio para o Brasil com a Missão Francesa em 1815, nasceu no Brasil e foi criado na França, mas trabalhou como fotógrafo no Brasil por mais de meio século (de 1865 a 1918), dedicando-se especialmente aos temas e paisagens de sua cidade natal, o Rio de Janeiro.

Cais dos Mineiros, Candelária e centro do Rio, fotografados da ilha das Cobras - Marc Ferrez, 1885



No correr do século XIX, diga-se de passagem, o Rio de Janeiro foi das cidades mais  fotografadas em todo mundo. Afinal, até mesmo Pedro II, o Imperador, era fotógrafo...

Toda cidade tem a fotografia em sua história e eis aí uma bela tarefa, fazer este levantamento, Brasil a fora: quem são os "fotógrafos históricos" de sua cidade?...
Cartas para a redação deste blog.



Neste 1º de Agosto, o blog A Foto Histórica (e suas histórias) no Brasil 
completa um ano de circulação, passando de 3000 acessos mensais.











O autor agradece a todos, e em especial aos que colaboram com comentários.

segunda-feira, 18 de julho de 2011

A foto de imprensa e as questões do momento

Várias questões, já recorrentes, sobre fotografia jornalística apareceram nos últimos dias em diálogos na Internet ou conversas pessoais. Complicadas como são, não permitem certezas, mas pedem, ao menos, reflexão:
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1. A vulgarização da imagem
         Ronaldo Theobald, importante fotojornalista da segunda metade do século XX, em e-mail pessoal, diz-se entristecido com o fato de que “todo mundo está capturando” a sua (o adjetivo é meu) famosa fotografia e suas fotos são quase como filhas, merecem respeito –  que ele intitula "Deus de calção e chuteiras" (leia seu depoimento em A História bem na Foto) e mostra o ex-jogador (e hoje presidente) do Vasco da Gama, Roberto “Dinamite”, assediado pela torcida ao entrar no campo da Portuguesa, no Rio de Janeiro, foto ganhadora do Prêmio Esso de Fotojornalismo de 1977.
Roberto Dinamite - Ronaldo Theobald, 1977

         Está aí uma questão típica da Internet e suas facilidades... O que nos leva à consideração (mas isto não o satisfaz...) de que a imagem não mais lhe pertence (embora a autoria continue eternamente sua), que ela tornou-se produto (e retrato) da cultura brasileira, daquilo que somos como povo. E, mais: que a constante cópia da foto lhe traz o reconhecimento geral da qualidade do seu trabalho, e ainda o apresenta às novas gerações, que não podem mais ver suas fotos todos dias nas páginas dos jornais. 
         A questão dos direitos autorais se complica com os possíveis usos comerciais da imagem, e o próprio Theobald cita a Lei  nº  9.610 de 19/02/1998, que lhe garantiria direitos patrimoniais e morais. Certo, mas sabe-se que, além da lei, há as interpretações...  O padrão predominante no “mercado” é o reconhecimento de direitos patrimoniais para a empresa produtora (no caso, o Jornal do Brasil) ou compradora, e de direitos autorais para o fotógrafo. O que também leva a outra questão: como controlar estes ganhos?... E ainda há que considerar o direito de imagem, sempre problemático... Nesta foto, por exemplo, é centralizado no jogador, mas inclui qualquer uma das pessoas enquadradas.    
         Uma discussão que é muito ampla, a ser (re)feita urgentemente, e que não tem cabimento aqui.... A arte da vida  consiste em fazer da vida uma obra de arte”, nas “palavras sábias de Mahatma Gandhi”, lembra o próprio Ronaldo Theobald, e talvez seja este o caminho... Mas esta lembrança também sugere (se é consenso o direito de citar uma frase ou trecho de texto) que o ato de copiar a foto conhecida e republicá-la na Internet (com crédito, é claro!, e sem retorno comercial), não é mais do que fazer uma citação da obra do fotógrafo...
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2. A correção da História
Não matem meu cachorro - Sergio Jorge, 1961
         De repente, uma situação inusitada: o veterano fotógrafo Sergio Jorge, Prêmio Esso de Fotojornalismo de 1961, reivindica, por e-mail, a autoria da foto alusiva aos mil gols de Pelé, que havia sido publicada neste blog com destaque, justamente, para a correção do crédito! 
O jornal O Globo publicara a foto, em caderno especial sobre os 70 anos de Pelé, com um sucinto crédito à agência Keystone e, dois dias depois se retratou, atribuindo-a à revista Manchete: “a foto foi feita pelo fotógrafo Mituo Shiguihara, na Vila Belmiro, por iniciativa do diretor de redação da época, Zevi Ghivelder” (leia no blog Panis cum Ovum, de ex-jornalistas da Manchete, a retificação). 
Pois, “está tudo errado!”, diz Sergio Jorge: “a ‘bolação’ da foto foi feita por mim, fotógrafo Sergio Jorge, e o repórter Durval Ferreira”, da sucursal de São Paulo, e “ninguém da redação do Rio, como diz em seu texto, Zevi e outros, participaram dessa história, e também o ex-colega, já falecido, Mituo Shiguihara, que nada tem a ver com a foto”. Ele detalha que levaram “uma Kombi/works cheia com as bolas, eram 347”, registrando com “variadas fotos feitas com minha Hasselblad e objetiva 250mm do alto da marquise”. Porém, quando os jogadores entraram em campo para o treino, inclusive Pelé, “desmancharam o arranjo e todos chutaram as 347 bolas para o público que estavam nas arquibancadas”. O jeito foi fazer “um arranjo com a fábrica de bolas Drible, pagando o valor das bolas em permuta com uma página de Manchete [espaço publicitário] e “aí sim o Zevy e o [Arnaldo] Niskier participaram no acerto da permuta”.
Pelé 1000 gols - Sergio Jorge, 1969
Sergio Jorge, que comercializa sua produção pela agência Fotodisk, diz que “todo bom material fotográfico produzido pelos fotógrafos era vendido ou trocado com agências fotográficas mundiais, e os fotógrafos ficavam a ver navios, pelos seus direitos autorais” e ele “sempre questionava o Jakito [Pedro Jacques Kapeller, diretor e sobrinho de Adolpho Bloch]. Agora, pretende também “questionar com relação à agência Keystone”: “vou brigar por meus direitos!”.
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         As questões em torno destes direitos (o autoral, o patrimonial e os de imagem) são mesmo um emaranhado... Mas esta correção é um bom mote para lembrar o "sumiço" do arquivo fotográfico da própria Editora Bloch, vendido por uma ninharia, em leilão judicial, a um “grupo familiar” de Teresópolis-RJ, em maio de 2010, a qual, desde então, não se tem mais acesso
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3. As novas formas de fotojornalismo    
         E chega a divulgação do fotógrafo Ayrton Camargo (recentemente citado neste blog, pela sua foto aérea em 360º do Rio), que fala de uma fotografia realmente impressionante. Publicada por um órgão de imprensa, é “a primeira, única e maior gigafoto feita em uma favela no Brasil (com certeza), e pelo que conferi com profissionais gringos, do Mundo também :-)”...  Diga-se de passagem, a maior foto do mundo (até Outubro de 2010) também foi feita no Rio de Janeiro, por pesquisadores do Impa (Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada), que utilizaram um robô para bater as fotos, depois montadas por um software de sincronização (esta é apenas uma reprodução fixa, a foto original permite observar os mínimos detalhes).
Rio de Janeiro visto do Pão de Açúcar (foto fixa de gigafoto) - Luiz Velho e equipe do Impa, 2010
         A foto de Ayrton é algo mais artesanal e ele explica como foi feita: “a imagem tem 138.286 x 36.532 pixels ou seja = + de 5 gigapixels reais. Esta gigafoto foi composta com 685 clicks e cobre 190 graus de visão”. Junto com ele, mais dois fotógrafos (Stefano Aguiar e Andréa Simões) fotografaram “sem parar, de 13:36h até as 15:22h, gerando 84 gb de arquivos, debaixo de um sol estúpido, isso depois de nos perdermos dentro das vielas do Morro do Alemão (já pacificado)”.
Este blog nem tem condições técnicas de apresentar o resultado, o que se vê aqui é apenas uma captura, fixa, da imagem. Para ver com todos os recursos é preciso acessar, no site do jornal O Dia, pelo link da foto. Fundamental é observar os detalhes e a sugestão é escolher o ponto que quer ver, girar a rodinha do mouse para ampliar e aguardar até que surja o foco. A foto abrange um arco que vai do Piscinão de Ramos e da ponte de acesso à Ilha do Governador até o estádio do Engenhão e além, Inhaúma e Engenho da Rainha. E vale a pena prestar atenção na paisagem do fundo: a baía da Guanabara, a ponte Rio-Niteroi, o Centro, as montanhas... Em suma, um show de Rio de Janeiro!
Rio de Janeiro visto do Morro do Alemão (foto fixa de gigafoto) - Ayrton Camargo, 2011
 
         Mas, a foto, nestes termos, levanta ao menos duas questões...
A primeira, a da autoria: quando são necessários três fotógrafos para fazer uma fotografia, estamos diante de um novo “status” autoral?... É algo diferente de um fotógrafo de estúdio e seus assistentes?... Certamente, lembra as histórias dos pintores clássicos e seus colaboradores/copiadores...
A segunda, é relativa ao veículo: uma foto como esta, publicada por um jornal na Internet, impossível de ser publicada em papel e que não é mais uma imagem estática, cabe ainda no conceito de fotojornalismo?... Ou é o fotojornalismo que não cabe mais no papel?...
Entre questões antigas, que aguardam mudanças, e questões novas, que mudam rápido demais, onde fica (ou para onde vai) o fotojornalismo? E, aliás, a própria fotografia?...